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Tudo será como antes (Adaury Farias)

Para Elise, minha neta durante a pandemia de covid-19.

 
Escute a poesia recitada por Adaury Farias

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Tudo será como antes

Saudade se parece com dengo de criança
Quando machuca o dedo.
Só passa com chamego, beijo e abraço.

Quando distante o peito aperta,
Quando perto o coração sossega.

Como ainda não dá pra estar por perto,
Fico relembrando nosso último abraço apertado
Para diminuir a saudade nesse momento nefasto.

Esse afastamento não vai demorar.
Logo, logo vai passar. Logo passa...

Aí, pro nosso contentamento, nada de “novo normal”!
Certamente tudo vai ser igual como era antes.

E estaremos, de novo, lado a lado.
Presentes. Olho no olho.
Com aperto de mão, beijo, dengo, chamego e abraço,
Sorrindo e relembrando que tudo passa, tudo passa!

E, vitoriosos, vamos estancar a dor da saudade
Vivendo intensamente cada pequeno instante.
Reconquistando nosso espaço
Pra tudo ser e voltar como era antes.

Pérola com íris avelã (Adaury Farias)


“Pérola com íris avelã”
(Para Elise, minha neta, escrito antes da pandemia)


Assista ao clipe com a poesia recitada por Adaury Farias


Pérola com íris avelã

Criada pelo destino com muito cuidado e muito esmero,
Linda e delicada com se fosse uma pérola mesmo.

Depois de rir, de brincar e espalhar carinho,
Salta pro colo da vó e se aconchega bem de mansinho.
Ali relaxa e se entrega ao sono profundo.

A imagem do sorriso, naquele rostinho lindo,
Revela que aquele colo é o melhor lugar do mundo.

Depois, dormindo entre travesseiros, parece sonhar...
Parece uma modelo saída das telas de Renoir.

De manhã, os raios fúlgidos do sol,
Que invadem a janela num clarão de ciúme fugaz,
Flagram nós três agarradinhos sob o lençol.

E então ela desperta com um sorriso sagaz
Atenta à saudação que lhe fazem os bem-te-vis e sabiás.

Seus olhinhos ao se abrirem, com suas íris avelã,
Iluminam nossa manhã com encanto e alegria,

Cativando nossos corações ao acordar sorrindo,
Contagiando com graça e amor outro dia de domingo.

Emparedado (Adaury Farias)


Escute o áudio narrado por Adaury Farias

Depois que comecei a enviar projetos para os colaboradores fazem trabalhos em home-office, o meu escritório, que tinha três salas ficou vazio e grande demais só pra mim, então ofereci uma das salas pra minha irmã psicóloga instalar o seu consultório, mas pra isso eu teria de abrir uma porta com entrada independente para não atrapalhar o acesso dela.

            Antes do início da demolição da parede, mandei os operários colocarem uma folha de compensado e colar as bordas com fita crepe pelo lado de dentro da minha sala pra não encher de poeira os móveis e o computador.

            Ainda pela manhã eles começaram a demolição e, no final do dia, um pouco antes do horário de saída deles, vi que só a metade da parede tinha sido demolida. 

            Normalmente eu ficava sozinho trabalhando até às sete da noite, mas nesse dia, logo depois que eles saíram, escutei um barulho como se fossem asas se debatendo. Parecia o barulho de um bicho preso querendo sair de dentro de uma caixa.

            Primeiro pensei que fosse o Pinduca, o servente de obras, que ainda estivesse lá na sala fazendo alguma limpeza. Fui lá e já estava tudo limpo e as luzes apagadas.

            Voltei pra minha sala e continuei adiantando o projeto que estava fazendo, e aí escutei novamente aquele barulho agoniante. Achei que fosse um passarinho que sempre dormia próximo da condensadora da central de ar-condicionado.

            Já estava escuro, e aquele barulho de vez em quando rompia o silêncio da sala e me incomodava, então fui lá fora pra ver se era o passarinho. Não era. Ele não estava lá.

            Subi um tanto nervoso pro meu apartamento, contei pra minha mulher e ela me acalmou dizendo que deveria ser o tal passarinho que, de vez em quando, entrava na nossa academia de ginástica e dormia embaixo da esteira.

            No dia seguinte, os operários concluíram a demolição e ficou só o compensado colado na parede dividindo as duas salas.

            Eles estavam juntando os cacos de alvenaria, quando eu cheguei pra ver como estava o serviço e ali, na presença deles, ouvi novamente aquele barulho de asas se debatendo ou alguma coisa presa querendo sair da parede.

            Perguntei que barulho era aquele e, os dois, com as sobrancelhas franzidas por cima da máscara, disseram que já tinham ouvido, mas não faziam ideia do que poderia ser aquilo.

            Aí eu contei que já tinha ouvido aquele barulho no dia anterior, logo depois que eles saíram. Eles se entreolharam assustados, ficaram calados, mas continuaram com o serviço.

            Quando começaram a aprofundar a escavação do baldrame pra colocar a soleira de granito, apareceu enterrada ali, sob as paredes construídas há mais de 30 anos, parte de uma peça de cerâmica que poderia ser uma manilha de barro de esgoto antiga, um pote de cerâmica ou sei lá o quê.

            Nesse momento, nós três, eu o Robson, o eletricista da empresa, e o Pinduca, ouvimos o barulho novamente.

            O Pinduca, que estava agachado fazendo a escavação, tomou um susto, levantou-se e deu um passo pra trás, o Robson ficou pálido e, em mim, subiu um arrepio, um calafrio de medo, imaginava o que poderia estar ali dentro daquela cerâmica, ou pior, emparedado naquele local.

            O Pinduca, gaguejando, falou:

— Quer que eu quebre pra ver o que tem dentro?

— Não, respondi, deixa do jeito que está. Amanhã quando chegar a soleira eu decido o que fazer.

            Voltei pra minha sala pra tentar me concentrar no trabalho, mas de vez em quando, aquele barulho invadia o ambiente me intrigando cada vez mais e causando arrepio.

— Eu construí esse prédio e não me lembro de ter colocado manilha de barro ali. Até porque nem se usava mais esse material àquela época.

            E me perguntava:

— Será um pote de cerâmica? Uma urna indígena? Um despacho de macumba?

            Poderia ser qualquer coisa, mas algum mistério tinha ali naquele local!

            Nesse dia eles sairiam às seis da tarde, e eu, pensando naquela coisa misteriosa, às quatro fui embora pro meu apartamento, que fica no andar de cima do escritório, pra não ter de ouvir aquele barulho.

            Passei a madrugada pensando o que poderia ser aquilo e, receoso do que iria encontrar se quebrasse aquela cerâmica, especulei todo tipo de situação.

            No dia seguinte, cheio de coragem, cheguei às sete da manhã no escritório e, em completo silêncio, colei o ouvido na parede, ao lado da folha de compensado, de onde parecia vir o barulho das asas se debatendo e fiquei ali imóvel até às oito, hora em que o Robson e o Pinduca chegam pra trabalhar.

            Quando eles entraram na sala em que estava sendo feito o serviço, ouvi aquele barulho de novo e senti um vento frio passar pela minha perna e pelo meu rosto, o coração disparou e fiquei arrepiado de medo, suando frio, mas continuei com o rosto colado ali na parede.

            Depois de alguns instantes, virei a cabeça para colocar o outro ouvido na parede pra continuar escutando de onde poderia vir o barulho e fiquei com o olhar pra cima da folha de compensado e, não deu outra, ouvi um dos dois sair da sala e, novamente aquele vento frio nas minhas pernas e no meu rosto, o coração disparou, mas desta vez foi de alívio e sorri, envergonhado de mim mesmo.

            Mistério resolvido, o que aconteceu foi o seguinte:

Quando eles abriram a porta da sala onde estava sendo feita a demolição, o ar de dentro da sala, pressionado pela abertura da porta, forçou a saída do vento entre a parede e o compensado que estava com a fita crepe descolada da parede e, com a passagem do ar, a fita colava e soltava da parede rapidamente, produzindo aquele som que parecia asas se debatendo.

            Fui até a sala onde eles estavam fazendo o serviço e pedi pra quebrarem aquela cerâmica misteriosa que estava ali enterrada.

            Os dois operários “muito corajosos” se armaram com um monte de ferramentas pra enfrentar o mistério.

            O Pinduca pegou a talhadeira, uma enxada e uma mareta de 10kg, o Robson pegou uma picareta e um ferro de cova, na primeira marretada que o Pinduca deu na cerâmica, vimos que era só um caco de telha colonial que foi colocada no concreto do baldrame.

— Putz! Que alívio. Que alívio.

— Nossos demônios são construídos pela nossa imaginação.

            Quando eles foram tirar o compensado, depois de fazer a demolição, deixaram o martelo cair acidentalmente em cima do porcelanato que fez uma pequena trinca no esmalte do piso, menor que a cabeça de um palito de fósforo.

            Agora, todo dia de manhã, aparece naquele local, em cima da trinca do porcelanato, uma pequena poça de água salgada que tem gosto de lágrima.

            Detalhe: Não há infiltrações nas paredes ou no piso e, embaixo do porcelanato, não passa nenhuma tubulação de água ou esgoto.

            Será que o piso está chorando a falta da parede que foi demolida?

            Isso eu ainda não descobri o que pode ser.



 

Curta caminhada (Adaury Farias)

 

Assista ao clipe com a poesia recitada por Adaury Farias


Curta caminhada

Lá pelos meus dez anos de idade, turrão à beça,
Ai do colega que me apelidasse!
Partia pra luta, era tapa, chute e palavrão.
A briga durava até que alguém nos separasse. 
Puto da vida corria pra longe e ficava com cara de mal. 
Depois, na bola de rua, tudo voltava ao normal.

Lá pelos vinte, eu era dono do mundo. 
O iluminado. Eu era o escolhido! 
Eu sabia de tudo! O resto? Era só pano de fundo.
Segui assim, achando que havia crescido.

Aos trancos consegui chegar aos quarenta. 
O tempo passou como um corisco petulante
Que nem vi minha largura ficar tão grande. 
No mais, tudo igual ao que era antes.

Agora, aos sessenta, devia ser resiliente,
Deixar tudo por menos, ser menos valente,
Me passar por trouxa e até fazer cara de palhaço.
Mas não aguento atitudes que me enchem o saco. 
Foda-se! Não é agora que vou levar desaforo pra casa.
A caminhada foi longa e ainda não estou fraco.
Falou merda, chuto logo o pau da barraca.

Quando, ou se, chegar aos oitenta, sem Alzheimer, 
Vou continuar contando sempre que puder, 
Sem falsa modéstia, remorso ou culpa guardada,
Que valeu cada sorriso, cada abraço
E cada porrada nessa curta caminhada.



A raça (Adaury Farias)


Escute a poesia recitada por  Adaury Farias


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A raça

Ao lado do vaso com rosa do deserto
Vi um gato com cara de sapo.

Um pouco mais à sua frente,
Outro com cara de cachorro-quente.
Talvez, um estivesse com fome e,
O outro, quem sabe? O prato da vez.
O primeiro, incrivelmente, coaxava.
O segundo, parecia que latia.
Num pulo subiram no muro,
Que estava revestido com unha-de-gato,
E, em cima do telhado da garagem,

Tête-à-tête, foram às vias de fato!
Em estridente e bizarro cenário,
Como duas lagartixas, se entrelaçaram.
Era fogo ardente, sem chama, sem fumaça...

Parecia rixa entre dois kamikazes!

Quando dei fé, já tinham feito as pazes.

E, juntinhos, cochilavam no tapete da sala.
Cada qual com seu modo de garantir a raça.

Aos amigos tombados pela Covid-19

 O tom sombrio da mensagem
Revela ingratas e nefastas notícias.
A cada dia mais tristeza me abate
Pela perda de tantas vidas,
Pela perda de tantos amigos.
Pela perda da inteligência
Dos que pensava resilientes.
Que dor amarga e contundente!
Até quando esse pobre peito suportará
Tanta perda e tanta inquisição de mim?
Haverá tempo de abraçar os meus amigos,
E os meus irmãos de sangue e os de coração?
A dor me fará semente se nenhum me restar
É dilacerante conviver com tanta perda assim.

Ciúme do Aru


Pra onde tu vai, rapá?
Vou pra praia da Fazendinha
Que tu vai fazê pra lá?
Vou banhá eu e minha minina.
Que mina doida é essa?
É minha mina Cristina.
É minha mina Cristina.
A maré tá de vazante.
E a praia cheia de lama
Mana deixa de drama
Primeiro vou pro futilama.
Mas não tem pião bastante
Prum time poder formar.
Eu chamo a turma do mangue
Pra modo a gente jogar
E esperar a maré lançante
Co´a minha mina banhá.
Tu tá é com má intenção
Com essa mina que tu vai levar.
Segura teu ciúme
Eu quero pra ela mostrá
Ela me chama de aru
Na água vou me revelar
Vou mostrar que é aru,
Na água vou me atirar
Ness’água tem candiru
Num cuida só pra tu vê!
Num tô nem aí pra tu
Co'a mina vou me banhá
Nem sei o que é candiru
E eu quero me aboletá
Eu quero me aboletá
Ele vai entrá no teu pinto
E nela noutro lugá!
Num cuida que tu vai vê.
Num cuida só pra tu vê.


Joaquina (Adaury Farias)

Escute a poesia recitada por Adaury Farias

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Joaquina

Ontem quando fui sair, pela manhã,
 A moto não funcionou, então levei pra oficina,
O mecânico logo falou: colocaram sal na gasolina.
Humm... isso foi coisa da Joaquina
Pra me deixa longe de casa, fazer a limpa
E fugir com o Bianor.

E agora o que é que eu faço?
Tô no mato sem cachorro.
Sem ela não consigo dar um passo.
Como vou pedir socorro
Pra sair desse sufoco?

Perdi a conta de quantas a danada já me fez.
Dessa vez foi pior, levou tudo que eu tinha.
Levou o espelho, o gás de cozinha,
A renda da venda das sacolinhas,
Minha calça jeans, meu celular...
Tenho certeza que foi pra dar praquele safado.
Até o pó de café e o açúcar mascavo
A messalina levou!
Levou tudo e me deixou liso outra vez.
Liso, liso sem nenhum puto centavo!

Tomaz, que deixou a batina
E hoje é “ex’ da Joaquina
E também já viveu essa amargura,
Quando me viu meio descaído,
Tomou um gole de cachaça, rio da minha desgraça,
E com toda experiência de vida, me disse: 

 “Bambino, deixa de frescura,
Não chore, não foi a primeira vez.
Também já passei por essa fissura!
Espere que a grana dela vai acabar.
Não sofra por essa meretriz.
Ela vai voltar cheia paixão e ternura!
E quando esse dia chegar,
Deixe o povo todo falar
Não faça como eu fiz,
Perdoe a cretina, sorria de novo.
E com Joaquina, volte a ser feliz!”

Quanto vale um amigo?

 

Ao meu amigo Fala, tombado pela covid-19.

Nessa jornada do tempo que parece longa, mas é tão pequena,

Uns valem menos que uma cibalena.
Outros, chafurdados na soberba e na arrogância da débil riqueza,
Trocados por bosta, o dono da bosta tem prejuízo com certeza.
Não se compra um amigo.

O tempo esculpe no coração o verdadeiro amigo.
Um verdadeiro amigo vale muito!
Vale a gargalhada com a piada sem graça.
A boa dose de vinho, cachaça ou de cerveja.

Com tira-gosto de camarão, calabresa ou queijo gorgonzola
Vale a companhia gratuita e sem nenhum interesse da hora.
Vale cada centavo não pago na sessão de psicoterapia.

Vale um longo papo com outros amigos na mesa da diretoria,
Na orla do “P. Help”, no bar do Carlão ou do Herculano,
Ou ainda, no domingo de manhã, café com pinga, no quiosque da Beira Rio.

Escutar sorrindo a nova versão da história real
Da viagem que fez na garupa do moto-boy-gay ou do flerte de refrega
Com a sapatão que escapuliu pela janela no hotel do Chico Brega
Contada cem vezes, cem vezes diferentes com notas de menestrel.

Um amigo vale muito!
Vale cada minuto da conversa fiada cheia de alegria.
O amigo que parte poderia deixar um grande vazio
Mas com tantas histórias que ficarão guardadas na memória
Jamais ficará ausente nos encontros que era do nosso feitio

O bon vivant! Não existe quem dele se queixe ou reclame,
Fora, é claro, os maridos peiados pra evitar vexame.

Todos nós passaremos, mas ele não passará,
Vai deixar saudade, sim, mas não esquecimento da sua companhia,
Haveremos sempre de lembrar das suas histórias divertidas
Grande amigo Fala: “O Sargentário Procecutor de Alegorias”.

 

Toma que o filho é teu

Nasci prematuramente devido a conflitos políticos, vividos por meus pais, e essa coisa nunca me contaminou, além disso, trocar voto por algum tipo de favor ou dinheiro, sou completamente avesso a isso!

Sempre fui técnico e, como arquiteto, construí muitas obras por aí.

Há alguns anos, no período de campanha política, meus dois irmãos, que foram contaminados pelo vírus da política, estavam candidatos a deputados estaduais.

Eis, que, no prédio em que moro, escritório no térreo e meu apartamento no pavimento superior, lá pelas 8h da noite, assistindo ao JN, ouvimos o som insistente da campainha.

É alguém pedindo ajuda pra votar em um dos meus irmãos candidatos, quer apostar?

Então minha esposa se levanta do sofá e, da sacada do apartamento, olha pra ver quem perturbava naquele horário.

Lá em embaixo, uma mulher com uns 26 anos de idade com uma criança no colo, que aparentava ter uns seis meses, fala bem alto pra ela:

— Quero falar com o Adaury!

Sem esboçar reação alguma, porém com o rosto transfigurado com aquela cena, minha esposa ouve o apelo, entra na sala e fala pra mim:

— Tem uma mulher com uma criança no colo aí em baixo que quer falar contigo!

Na verdade, eu já tinha escutado a voz aguda e cirúrgica da mulher e, confesso, senti um friozinho na barriga e parti pra defensiva e fui logo dizendo:

— Essa mulher é doida!? Quem será? O que será que ela quer? Só pode ser doida!

Quando já me levantava para atendê-la, ouvi, novamente, a mulher gritar lá embaixo:

— Quero falar com o Adaury! Chame ele pra mim!

Pense num turbilhão. Assim estava meus pensamentos.

Fui descendo a escada devagarinho pensando numa saída de um beco em que nunca havia entrado.

Quando cheguei no patamar da escada, olhei a figura na frente das barras de ferro do portão, com o bebê nos braços, pensei que eu poderia estar na situação contrária, ou seja, atras das grades.

Mas, também confesso era um mulherão!

— Boa noite, senhora. Murmurei com uma voz quase inaudível, esperando que a reação dela fosse dizer: Toma que o filho é teu!

Então ela falou num tom mais suave:

— Tu que é o Adaury?

— Sim, sou eu! Respondi em tom firme, porém não tanto amedrontado.

— Aquela obra ali na rua das Bananeiras é tua?

— Sim, algum problema?

— Eu queria que tu me desse aquela madeira que tá lá na frente, pra eu arrumar meu barraco.

Nem pestanejei e tampouco perguntei onde ela morava.

— Claro, é toda sua. Amanhã mandarei o mestre de obras deixar lá pra você.

Ainda bem que minha mulher, lá na sacada, viu e escutou toda a conversa, caso contrário, como eu iria explicar todo aquele modo imperativo da dona do barraco? Isso poderia ter sido o indicativo de um divórcio.

Mas não erramos no comentário, foi um pedido de compra de voto!

O mestre de obras, depois me falou que viu, na parede da casa dela, cartazes com retratos dos dois irmãos. Um do lado do outro.

Paguei pelo susto.

Umbilical

À minha Mãe Deusolina Salles Farias

Escute a poesia recitada por Adaury Farias

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Umbilical

Lá se vão tantos anos e lembranças do tempo
de eu criança, ainda me enchem de alegria.
Na mesa da sala, aquela mão macia,
apoiando a minha que, sem coordenação motora,
cobria de qualquer jeito as letras pontilhadas
do caderno de caligrafia.
Ainda ouço aquela voz suave me fazendo repetir,
uma a uma, as cinco palavrinhas mágicas,
tão simples e perfeitamente adequadas,
que desde lá repito de maneira automática.
Como esqueceria aquele sorriso largo e o olhar
reluzente de imenso entusiasmo, que se abriu,
ao me ouvir, pela primeira vez, soletrar sozinho,
o nome completo de uma loja da rua?
Mas também não esqueço o singelo olhar a me corrigir
quando deslizava entre as frases.
Um dia, inda menino, quando dei fé,
me fiz de adulto e parei de chorar
ao perceber que a dor maior era nela
e não no machucado do meu pé.
E a partir de então vi que nunca estive sozinho
na alegria ou na dor.
Parecia que o cordão umbilical ainda estava ali,
pois tudo nela se refletia.
O tempo dispara e nos separa pelo tom das frontes:
uma castanha, outra encanecida.
No percurso da vida, paixões e amores se instalam
e aos poucos desabam como terras caídas.
Nesse tempo turvo, egoísta que sou, o que me marca
é não tê-la aqui pra aliviar a minha dor.
Só o amor dela tinha o poder de nunca acabar,
um amor eterno, fiel e incondicional.