Depois
que comecei a enviar projetos para os colaboradores fazem trabalhos em
home-office, o meu escritório, que tinha três salas ficou vazio e grande demais
só pra mim, então ofereci uma das salas pra minha irmã psicóloga instalar o seu
consultório, mas pra isso eu teria de abrir uma porta com entrada independente
para não atrapalhar o acesso dela.
Antes do início da demolição da
parede, mandei os operários colocarem uma folha de compensado e colar as bordas
com fita crepe pelo lado de dentro da minha sala pra não encher de poeira os
móveis e o computador.
Ainda
pela manhã eles começaram a demolição e, no final do dia, um pouco antes do
horário de saída deles, vi que só a metade da parede tinha sido demolida.
Normalmente
eu ficava sozinho trabalhando até às sete da noite, mas nesse dia, logo depois
que eles saíram, escutei um barulho como se fossem asas se debatendo. Parecia o
barulho de um bicho preso querendo sair de dentro de uma caixa.
Primeiro
pensei que fosse o Pinduca, o servente de obras, que ainda estivesse lá na sala
fazendo alguma limpeza. Fui lá e já estava tudo limpo e as luzes apagadas.
Voltei
pra minha sala e continuei adiantando o projeto que estava fazendo, e aí
escutei novamente aquele barulho agoniante. Achei que fosse um passarinho que
sempre dormia próximo da condensadora da central de ar-condicionado.
Já
estava escuro, e aquele barulho de vez em quando rompia o silêncio da sala e me
incomodava, então fui lá fora pra ver se era o passarinho. Não era. Ele não
estava lá.
Subi
um tanto nervoso pro meu apartamento, contei pra minha mulher e ela me acalmou
dizendo que deveria ser o tal passarinho que, de vez em quando, entrava na
nossa academia de ginástica e dormia embaixo da esteira.
No
dia seguinte, os operários concluíram a demolição e ficou só o compensado
colado na parede dividindo as duas salas.
Eles
estavam juntando os cacos de alvenaria, quando eu cheguei pra ver como estava o
serviço e ali, na presença deles, ouvi novamente aquele barulho de asas se
debatendo ou alguma coisa presa querendo sair da parede.
Perguntei
que barulho era aquele e, os dois, com as sobrancelhas franzidas por cima da
máscara, disseram que já tinham ouvido, mas não faziam ideia do que poderia ser
aquilo.
Aí
eu contei que já tinha ouvido aquele barulho no dia anterior, logo depois que
eles saíram. Eles se entreolharam assustados, ficaram calados, mas continuaram
com o serviço.
Quando
começaram a aprofundar a escavação do baldrame pra colocar a soleira de
granito, apareceu enterrada ali, sob as paredes construídas há mais de 30 anos,
parte de uma peça de cerâmica que poderia ser uma manilha de barro de esgoto
antiga, um pote de cerâmica ou sei lá o quê.
Nesse
momento, nós três, eu o Robson, o eletricista da empresa, e o Pinduca, ouvimos
o barulho novamente.
O
Pinduca, que estava agachado fazendo a escavação, tomou um susto, levantou-se e
deu um passo pra trás, o Robson ficou pálido e, em mim, subiu um arrepio, um
calafrio de medo, imaginava o que poderia estar ali dentro daquela cerâmica, ou
pior, emparedado naquele local.
O
Pinduca, gaguejando, falou:
— Quer que eu quebre pra ver o que tem dentro?
— Não, respondi, deixa do jeito que está. Amanhã
quando chegar a soleira eu decido o que fazer.
Voltei
pra minha sala pra tentar me concentrar no trabalho, mas de vez em quando,
aquele barulho invadia o ambiente me intrigando cada vez mais e causando
arrepio.
— Eu construí esse prédio e não me lembro de ter
colocado manilha de barro ali. Até porque nem se usava mais esse material
àquela época.
E
me perguntava:
— Será um pote de cerâmica? Uma urna indígena? Um
despacho de macumba?
Poderia
ser qualquer coisa, mas algum mistério tinha ali naquele local!
Nesse
dia eles sairiam às seis da tarde, e eu, pensando naquela coisa misteriosa, às
quatro fui embora pro meu apartamento, que fica no andar de cima do escritório,
pra não ter de ouvir aquele barulho.
Passei
a madrugada pensando o que poderia ser aquilo e, receoso do que iria encontrar
se quebrasse aquela cerâmica, especulei todo tipo de situação.
No
dia seguinte, cheio de coragem, cheguei às sete da manhã no escritório e, em
completo silêncio, colei o ouvido na parede, ao lado da folha de compensado, de
onde parecia vir o barulho das asas se debatendo e fiquei ali imóvel até às
oito, hora em que o Robson e o Pinduca chegam pra trabalhar.
Quando
eles entraram na sala em que estava sendo feito o serviço, ouvi aquele barulho
de novo e senti um vento frio passar pela minha perna e pelo meu rosto, o
coração disparou e fiquei arrepiado de medo, suando frio, mas continuei com o
rosto colado ali na parede.
Depois
de alguns instantes, virei a cabeça para colocar o outro ouvido na parede pra
continuar escutando de onde poderia vir o barulho e fiquei com o olhar pra cima
da folha de compensado e, não deu outra, ouvi um dos dois sair da sala e,
novamente aquele vento frio nas minhas pernas e no meu rosto, o coração
disparou, mas desta vez foi de alívio e sorri, envergonhado de mim mesmo.
Mistério
resolvido, o que aconteceu foi o seguinte:
Quando eles abriram a
porta da sala onde estava sendo feita a demolição, o ar de dentro da sala,
pressionado pela abertura da porta, forçou a saída do vento entre a parede e o
compensado que estava com a fita crepe descolada da parede e, com a passagem do
ar, a fita colava e soltava da parede rapidamente, produzindo aquele som que
parecia asas se debatendo.
Fui
até a sala onde eles estavam fazendo o serviço e pedi pra quebrarem aquela
cerâmica misteriosa que estava ali enterrada.
Os
dois operários “muito corajosos” se armaram com um monte de ferramentas pra
enfrentar o mistério.
O
Pinduca pegou a talhadeira, uma enxada e uma mareta de 10kg, o Robson pegou uma
picareta e um ferro de cova, na primeira marretada que o Pinduca deu na
cerâmica, vimos que era só um caco de telha colonial que foi colocada no
concreto do baldrame.
— Putz! Que alívio. Que alívio.
— Nossos demônios são construídos pela nossa
imaginação.
Quando
eles foram tirar o compensado, depois de fazer a demolição, deixaram o martelo
cair acidentalmente em cima do porcelanato que fez uma pequena trinca no
esmalte do piso, menor que a cabeça de um palito de fósforo.
Agora,
todo dia de manhã, aparece naquele local, em cima da trinca do porcelanato, uma
pequena poça de água salgada que tem gosto de lágrima.
Detalhe:
Não há infiltrações nas paredes ou no piso e, embaixo do porcelanato, não passa
nenhuma tubulação de água ou esgoto.
Será
que o piso está chorando a falta da parede que foi demolida?
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