Ramal do Vai e Volta
No ramal do Vai e Volta, num trecho qualquer na BR156, no sítio “Boi que não berra”, morava o Sr. Smith, homem de muitas posses e meias palavras.
Um metro e noventa de altura, descendente de alemão, super ansioso, gago, carrancudo e, além do sotaque meio carregado, ainda falava com a língua nos dentes.
Zé Repolho, um rapazinho franzino que também morava por perto, trabalhava há poucos dias no sítio “Boi que não berra”, tinha esse apelido porque era todo enrolado, muito medroso e apressadinho.
– “Zé Zé...polho, vá na ca ca.. de Don Zefa e traz meu ma macaco já é, e num demor ” – ordenou o Sr. Smith ao seu funcionário.
Para compreender o que o Sr. Smith dizia, precisava de muito convívio com ele pra entender o que ele realmente queria.
Como o rapazinho era novato e com medo de ser repreendido, Zé Repolho não perguntou nada, montou na sua bike e chispou em direção à casa de Dona Zefa. Pelo menos ele entendeu que era na casa de Dona Josefa, que ele conhecia muito bem.
A casa dela ficava a uns cinco quilômetros adentro, no ramal do Vai e Volta.
Compenetrado com a missão que lhe fora dada, no meio do caminho, caiu a ficha, e falou consigo mesmo:
– Esse alemão só pode ser doido! Como ele quer que eu leve o macaco na bicicleta? Vai que a polícia me pega! Vô ser preso. Mas eu também não posso perder esse emprego, né?
Esses e outros pensamentos iam enchendo sua cabecinha de repolho e alface crespa, uma verdadeira salada de cenários absurdos!
Depois de muito pedalar e pensar sobre como fazer o translado da fera, no caminho ajuntou uma caixa de papelão, daquelas de sabão Cré-Cré, e logo chegou à casa da vizinha.
Josefa, deveria ter uns 40 anos, viúva e com oito moleques, já crescidinhos, mesmo com essa pouca idade, estava bem bagaçada, sentada numa cadeira de balanço, à sombra de uma frondosa mangueira, cochilava com uma porronca apagada no canto da boca.
– Dona Josefa! – falou baixinho com medo da reação brusca que ela poderia ter, porque, na região, ela era tida com uma mulher muito bronqueira.
Sem se mover da cadeira, com o vestido arregaçado até o meio das coxas, quase dava pra ver sua calcinha, ou talvez nem tivesse nada por baixo, abriu apenas um olho, pra não perder todo o sono, e com uma voz grave de quem não queria sair do cochilo, falou:
– Quié, Repolho? Quié que tu quer rapá?
– Vim buscar o macaco do Seu Smith. Que eu vou levar na bicicleta.
Dona Josefa, do jeito que estava relaxada na cadeira, abanou as entre coxas com a barra do vestido, sem tirá-lo da posição que estava, sem se mexer, gritou:
– Dário – um dos filhos dela –, traz o macaco jacaré que está lá atrás da sentina.
O Zé Repolho quando ouviu Dona Zefa falar aquilo, sem entender o grito que, naquele momento, se misturou com berro das cabras que estavam ali em volta da dela, montou na bicicleta e, sem olhar pra trás, abriu no trecho de volta pro sítio do Sr. Smith.
Lá chegando, com um palmo de língua pra fora, o alemão que estava embaixo da sua picape Willys, viu só os pneus da bicicleta do Repolho e suas sandálias havaianas remendadas no chão do terreiro.
Saiu debaixo do carro com uma enorme chave inglesa na mão e uma cara de que há dias estava muito enfezado e, mais feia do que ele normalmente era, seguiu em direção ao Zé Repolho, com aquela voz gaga e língua entre os dentes, gaguejando sem nenhum sotaque, abrindo os braços, perguntou:
– Ca ca Cadê?
– Não trouxe não, Seu Smith! – disse Zé Repolho, recuando uns passos pra trás com medo daquela cara feia do alemão – fiquei com medo da polícia me prender! Se fosse só o macaco eu dava um jeito de trazer. Mas um macaco e um jacaré!? Não, não trouxe. Pode me dar minhas contas que vou mimbora.
O Sr. Smith esqueceu um pouco do seu enfezamento, carrancudo e cheio de mau humor, caiu na risada.
Zé Repolho, sem entender a reação do alemão, atônito e cabisbaixo, ficou sem saber o que fazer.
Cidinha, esposa do alemão, que estava perto e presenciou o papo desde o início, depois de dar boas gargalhadas, entre risos, falou:
– Deixa de ser besta Repolho! Não era um macaco e um jacaré, seu besta! Era o macaco jacaré que serve pra suspender o carro.
– Volta lá! Vai.
E lá se foi de volta o Zé Repolho pra casa da Dona Zefa, no ramal do Vai e Volta.
Anjos existem
Eu deveria ter uns 10 anos de idade.
Ao lado da minha casa
morava Sra. Suerda, a dona do puteiro mais chic de Macapá.
Eu e outros moleques da
mesma idade subíamos nas árvores do quintal da minha casa, mas que ficavam ao
lado e nos fundos da casa dela, pra tentar ver as “meninas” da Suerda que passavam
o dia lá se recuperando do trabalho noturno.
Era só tempo perdido.
Nunca víamos nada, claro
né? elas passavam o dia dormindo pra ir trabalhar a noite.
Toda tarde subíamos no
cajueiro, que era bem alto e que ficava nos fundos e que dava pra ver a cozinha
e área de serviço, depois subíamos na árvore de pau ferro, mais frondosa e
cheia de galhos, que ficava ao lado da casa dela e que dava para ver as janelas
dos quartos, mas as janelas eram de venezianas com tela e também não dava pra
ver nada.
Num dia à tardinha, ainda
aprendendo andar de bicicleta, aquela famosa Monark, bicicleta de mulher, que
não tinha o varão no meio e era fácil de pedalar, tinha aprendido a me
equilibrar e, morrendo de medo resolvi dar a volta no quarteirão.
Juro que foi coincidência.
Vinha pedalando feliz da
vida sem pensar em nada, pela lateral da rua, essa rua só tinha um pouco de “piche”
por onde os automóveis passavam e as laterais eram de piçarra solta, e,
passando bem na frente da casa da cafetina, escorreguei, a corrente da
bicicleta caiu e minha perna ficou engatada entre a coroa e a corrente.
Esfolou toda minha fina
canela de moleque de 10anos.
Abri o berreiro e não
conseguia tirar a perna entre a corrente e a coroa, não passava ninguém na rua
pra me socorrer. E dor aumentando...
Quando me espantei,
chegaram duas das “meninas” da Suerda para me socorrer, só de camisola
transparente.
Me carregaram para dentro
da casa, e eu chorando, mas de olho arregalado, vendo as “meninas” naquele
estado de pura liberdade.
Putz! Que alegria. Ou
putz! Que dor! Não sabia bem qual sensação era maior!
Mesmo assim eu chorava
pra não ter de ir embora, e fiquei lá no sofá e elas cuidando de mim, eu já
meio refeito do acidente, comecei a me fazer homenzinho.
Passaram mertiolate,
aquele de antigamente, doía pra cacete, mas eu não reclamei nadinha.
Passava pela minha
imaginação que elas poderiam me levar pro quarto, pra cuidar melhor de mim. Que
doidera!
Pense numa queda dolorida
que me deixou feliz. O que queda abençoada.
Achei até que tinha
batido a cabeça e estava meio doido.
Depois que sai de lá, corri
pra junto da turma que subia nas árvores junto comigo para tentarmos brechar as
“meninas” da Suerda, falei o que tinha acontecido, morreram de inveja, tomaram
a bicicleta da minha mão e fizeram fila pra ficar passeando na frente da casa
da cafetina, talvez torcendo pra que acontecesse o mesmo acidente que houve comigo.
E nada! Nenhum acidente.
Nunca mais elas
apareceram na porta.
Acho que não eram putas
da cafetina, eram “anjas” que vieram me socorrer.