Tudo será como antes (Adaury Farias)
Pérola com íris avelã (Adaury Farias)
Emparedado (Adaury Farias)
Depois
que comecei a enviar projetos para os colaboradores fazem trabalhos em
home-office, o meu escritório, que tinha três salas ficou vazio e grande demais
só pra mim, então ofereci uma das salas pra minha irmã psicóloga instalar o seu
consultório, mas pra isso eu teria de abrir uma porta com entrada independente
para não atrapalhar o acesso dela.
Antes do início da demolição da
parede, mandei os operários colocarem uma folha de compensado e colar as bordas
com fita crepe pelo lado de dentro da minha sala pra não encher de poeira os
móveis e o computador.
Ainda
pela manhã eles começaram a demolição e, no final do dia, um pouco antes do
horário de saída deles, vi que só a metade da parede tinha sido demolida.
Normalmente
eu ficava sozinho trabalhando até às sete da noite, mas nesse dia, logo depois
que eles saíram, escutei um barulho como se fossem asas se debatendo. Parecia o
barulho de um bicho preso querendo sair de dentro de uma caixa.
Primeiro
pensei que fosse o Pinduca, o servente de obras, que ainda estivesse lá na sala
fazendo alguma limpeza. Fui lá e já estava tudo limpo e as luzes apagadas.
Voltei
pra minha sala e continuei adiantando o projeto que estava fazendo, e aí
escutei novamente aquele barulho agoniante. Achei que fosse um passarinho que
sempre dormia próximo da condensadora da central de ar-condicionado.
Já
estava escuro, e aquele barulho de vez em quando rompia o silêncio da sala e me
incomodava, então fui lá fora pra ver se era o passarinho. Não era. Ele não
estava lá.
Subi
um tanto nervoso pro meu apartamento, contei pra minha mulher e ela me acalmou
dizendo que deveria ser o tal passarinho que, de vez em quando, entrava na
nossa academia de ginástica e dormia embaixo da esteira.
No
dia seguinte, os operários concluíram a demolição e ficou só o compensado
colado na parede dividindo as duas salas.
Eles
estavam juntando os cacos de alvenaria, quando eu cheguei pra ver como estava o
serviço e ali, na presença deles, ouvi novamente aquele barulho de asas se
debatendo ou alguma coisa presa querendo sair da parede.
Perguntei
que barulho era aquele e, os dois, com as sobrancelhas franzidas por cima da
máscara, disseram que já tinham ouvido, mas não faziam ideia do que poderia ser
aquilo.
Aí
eu contei que já tinha ouvido aquele barulho no dia anterior, logo depois que
eles saíram. Eles se entreolharam assustados, ficaram calados, mas continuaram
com o serviço.
Quando
começaram a aprofundar a escavação do baldrame pra colocar a soleira de
granito, apareceu enterrada ali, sob as paredes construídas há mais de 30 anos,
parte de uma peça de cerâmica que poderia ser uma manilha de barro de esgoto
antiga, um pote de cerâmica ou sei lá o quê.
Nesse
momento, nós três, eu o Robson, o eletricista da empresa, e o Pinduca, ouvimos
o barulho novamente.
O
Pinduca, que estava agachado fazendo a escavação, tomou um susto, levantou-se e
deu um passo pra trás, o Robson ficou pálido e, em mim, subiu um arrepio, um
calafrio de medo, imaginava o que poderia estar ali dentro daquela cerâmica, ou
pior, emparedado naquele local.
O
Pinduca, gaguejando, falou:
— Quer que eu quebre pra ver o que tem dentro?
— Não, respondi, deixa do jeito que está. Amanhã
quando chegar a soleira eu decido o que fazer.
Voltei
pra minha sala pra tentar me concentrar no trabalho, mas de vez em quando,
aquele barulho invadia o ambiente me intrigando cada vez mais e causando
arrepio.
— Eu construí esse prédio e não me lembro de ter
colocado manilha de barro ali. Até porque nem se usava mais esse material
àquela época.
E
me perguntava:
— Será um pote de cerâmica? Uma urna indígena? Um
despacho de macumba?
Poderia
ser qualquer coisa, mas algum mistério tinha ali naquele local!
Nesse
dia eles sairiam às seis da tarde, e eu, pensando naquela coisa misteriosa, às
quatro fui embora pro meu apartamento, que fica no andar de cima do escritório,
pra não ter de ouvir aquele barulho.
Passei
a madrugada pensando o que poderia ser aquilo e, receoso do que iria encontrar
se quebrasse aquela cerâmica, especulei todo tipo de situação.
No
dia seguinte, cheio de coragem, cheguei às sete da manhã no escritório e, em
completo silêncio, colei o ouvido na parede, ao lado da folha de compensado, de
onde parecia vir o barulho das asas se debatendo e fiquei ali imóvel até às
oito, hora em que o Robson e o Pinduca chegam pra trabalhar.
Quando
eles entraram na sala em que estava sendo feito o serviço, ouvi aquele barulho
de novo e senti um vento frio passar pela minha perna e pelo meu rosto, o
coração disparou e fiquei arrepiado de medo, suando frio, mas continuei com o
rosto colado ali na parede.
Depois
de alguns instantes, virei a cabeça para colocar o outro ouvido na parede pra
continuar escutando de onde poderia vir o barulho e fiquei com o olhar pra cima
da folha de compensado e, não deu outra, ouvi um dos dois sair da sala e,
novamente aquele vento frio nas minhas pernas e no meu rosto, o coração
disparou, mas desta vez foi de alívio e sorri, envergonhado de mim mesmo.
Mistério
resolvido, o que aconteceu foi o seguinte:
Quando eles abriram a
porta da sala onde estava sendo feita a demolição, o ar de dentro da sala,
pressionado pela abertura da porta, forçou a saída do vento entre a parede e o
compensado que estava com a fita crepe descolada da parede e, com a passagem do
ar, a fita colava e soltava da parede rapidamente, produzindo aquele som que
parecia asas se debatendo.
Fui
até a sala onde eles estavam fazendo o serviço e pedi pra quebrarem aquela
cerâmica misteriosa que estava ali enterrada.
Os
dois operários “muito corajosos” se armaram com um monte de ferramentas pra
enfrentar o mistério.
O
Pinduca pegou a talhadeira, uma enxada e uma mareta de 10kg, o Robson pegou uma
picareta e um ferro de cova, na primeira marretada que o Pinduca deu na
cerâmica, vimos que era só um caco de telha colonial que foi colocada no
concreto do baldrame.
— Putz! Que alívio. Que alívio.
— Nossos demônios são construídos pela nossa
imaginação.
Quando
eles foram tirar o compensado, depois de fazer a demolição, deixaram o martelo
cair acidentalmente em cima do porcelanato que fez uma pequena trinca no
esmalte do piso, menor que a cabeça de um palito de fósforo.
Agora,
todo dia de manhã, aparece naquele local, em cima da trinca do porcelanato, uma
pequena poça de água salgada que tem gosto de lágrima.
Detalhe:
Não há infiltrações nas paredes ou no piso e, embaixo do porcelanato, não passa
nenhuma tubulação de água ou esgoto.
Será
que o piso está chorando a falta da parede que foi demolida?
Curta caminhada (Adaury Farias)
A raça (Adaury Farias)
Aos amigos tombados pela Covid-19
Ciúme do Aru
Pra onde tu vai, rapá?
Vou pra praia da FazendinhaQue tu vai fazê pra lá?
Vou banhá eu e minha minina.Que mina doida é essa?
É minha mina Cristina.A maré tá de vazante.
É minha mina Cristina.
E a praia cheia de lama
Mana deixa de dramaMas não tem pião bastante
Primeiro vou pro futilama.
Prum time poder formar.
Eu chamo a turma do mangueTu tá é com má intenção
Pra modo a gente jogar
E esperar a maré lançante
Co´a minha mina banhá.
Com essa mina que tu vai levar.
Segura teu ciúmeNess’água tem candiru
Eu quero pra ela mostrá
Ela me chama de aru
Na água vou me revelar
Vou mostrar que é aru,
Na água vou me atirar
Num cuida só pra tu vê!
Num tô nem aí pra tuEle vai entrá no teu pinto
Co'a mina vou me banhá
Nem sei o que é candiru
E eu quero me aboletá
Eu quero me aboletá
E nela noutro lugá!
Num cuida que tu vai vê.
Num cuida só pra tu vê.
Joaquina (Adaury Farias)
E agora o que é que eu faço?Tô no mato sem cachorro.Sem ela não consigo dar um passo.Como vou pedir socorroPra sair desse sufoco?
Tomaz, que deixou a batinaE hoje é “ex’ da JoaquinaE também já viveu essa amargura,Quando me viu meio descaído,Tomou um gole de cachaça, rio da minha desgraça,E com toda experiência de vida, me disse:
Quanto vale um amigo?
Ao meu amigo Fala, tombado pela covid-19.
Nessa jornada do tempo que parece longa, mas é tão pequena,
Uns valem menos que uma cibalena.Outros, chafurdados na soberba e na arrogância da débil riqueza,
Trocados por bosta, o dono da bosta tem prejuízo com certeza.
Não se compra um amigo.
Um verdadeiro amigo vale muito!
Vale a gargalhada com a piada sem graça.
A boa dose de vinho, cachaça ou de cerveja.
Com tira-gosto de camarão, calabresa ou queijo gorgonzola
Vale a companhia gratuita e sem nenhum interesse da hora.
Vale cada centavo não pago na sessão de psicoterapia.
Vale um longo papo com outros amigos na mesa da diretoria,
Na orla do “P. Help”, no bar do Carlão ou do Herculano,
Ou ainda, no domingo de manhã, café com pinga, no quiosque da Beira Rio.
Escutar sorrindo a nova versão da história real
Da viagem que fez na garupa do moto-boy-gay ou do flerte de refrega
Com a sapatão que escapuliu pela janela no hotel do Chico Brega
Contada cem vezes, cem vezes diferentes com notas de menestrel.
Um amigo vale muito!
Vale cada minuto da conversa fiada cheia de alegria.
O amigo que parte poderia deixar um grande vazio
Mas com tantas histórias que ficarão guardadas na memória
Jamais ficará ausente nos encontros que era do nosso feitio
O bon vivant! Não existe quem dele se queixe ou reclame,
Fora, é claro, os maridos peiados pra evitar vexame.
Todos nós passaremos, mas ele não passará,
Vai deixar saudade, sim, mas não esquecimento da sua companhia,
Haveremos sempre de lembrar das suas histórias divertidas
Grande amigo Fala: “O Sargentário Procecutor de Alegorias”.
Toma que o filho é teu
Nasci prematuramente devido a conflitos políticos, vividos por meus pais, e essa coisa nunca me contaminou, além disso, trocar voto por algum tipo de favor ou dinheiro, sou completamente avesso a isso!
Sempre
fui técnico e, como arquiteto, construí muitas obras por aí.
Há
alguns anos, no período de campanha política, meus dois irmãos, que foram
contaminados pelo vírus da política, estavam candidatos a deputados estaduais.
Eis,
que, no prédio em que moro, escritório no térreo e meu apartamento no pavimento
superior, lá pelas 8h da noite, assistindo ao JN, ouvimos o som insistente da
campainha.
É
alguém pedindo ajuda pra votar em um dos meus irmãos candidatos, quer apostar?
Então
minha esposa se levanta do sofá e, da sacada do apartamento, olha pra ver quem
perturbava naquele horário.
Lá
em embaixo, uma mulher com uns 26 anos de idade com uma criança no colo, que
aparentava ter uns seis meses, fala bem alto pra ela:
—
Quero falar com o Adaury!
Sem
esboçar reação alguma, porém com o rosto transfigurado com aquela cena, minha
esposa ouve o apelo, entra na sala e fala pra mim:
—
Tem uma mulher com uma criança no colo aí em baixo que quer falar contigo!
Na
verdade, eu já tinha escutado a voz aguda e cirúrgica da mulher e, confesso,
senti um friozinho na barriga e parti pra defensiva e fui logo dizendo:
—
Essa mulher é doida!? Quem será? O que será que ela quer? Só pode ser doida!
Quando
já me levantava para atendê-la, ouvi, novamente, a mulher gritar lá embaixo:
—
Quero falar com o Adaury! Chame ele pra mim!
Pense
num turbilhão. Assim estava meus pensamentos.
Fui
descendo a escada devagarinho pensando numa saída de um beco em que nunca havia
entrado.
Quando
cheguei no patamar da escada, olhei a figura na frente das barras de ferro do
portão, com o bebê nos braços, pensei que eu poderia estar na situação
contrária, ou seja, atras das grades.
Mas,
também confesso era um mulherão!
—
Boa noite, senhora. Murmurei com uma voz quase inaudível, esperando que a
reação dela fosse dizer: Toma que o filho é teu!
Então
ela falou num tom mais suave:
—
Tu que é o Adaury?
—
Sim, sou eu! Respondi em tom firme, porém não tanto amedrontado.
—
Aquela obra ali na rua das Bananeiras é tua?
—
Sim, algum problema?
—
Eu queria que tu me desse aquela madeira que tá lá na frente, pra eu arrumar
meu barraco.
Nem
pestanejei e tampouco perguntei onde ela morava.
—
Claro, é toda sua. Amanhã mandarei o mestre de obras deixar lá pra você.
Ainda
bem que minha mulher, lá na sacada, viu e escutou toda a conversa, caso
contrário, como eu iria explicar todo aquele modo imperativo da dona do
barraco? Isso poderia ter sido o indicativo de um divórcio.
Mas
não erramos no comentário, foi um pedido de compra de voto!
O
mestre de obras, depois me falou que viu, na parede da casa dela, cartazes com
retratos dos dois irmãos. Um do lado do outro.
Paguei
pelo susto.
Umbilical
À minha Mãe Deusolina Salles Farias
_____________________________________________
Umbilical
Ainda ouço aquela voz suave me fazendo repetir,uma a uma, as cinco palavrinhas mágicas,tão simples e perfeitamente adequadas,que desde lá repito de maneira automática.
Mas também não esqueço o singelo olhar a me corrigirquando deslizava entre as frases.
E a partir de então vi que nunca estive sozinhona alegria ou na dor.Parecia que o cordão umbilical ainda estava ali,pois tudo nela se refletia.
Nesse tempo turvo, egoísta que sou, o que me marcaé não tê-la aqui pra aliviar a minha dor.
Só o amor dela tinha o poder de nunca acabar,um amor eterno, fiel e incondicional.
Desafio entre o Sabiá na mangueira e o Bem-te-vi na rede de baixa tensão (Dalva Marília)
Desafio entre o Sabiá na mangueira e
o Bem-te-vi na rede de baixa tensão
Micos dos amigos (e meus também)
Tudo fora do lugar
Senti uma vontade enorme de desabafar...
Mas, como ele poderia pensar que eu estivesse demente,
Vacilei um pouco e assumi o risco.
Não me contive e me pus a falar:
Meu papagaio me aporrinha se queixando de dor de dente
O galo do vizinho que me acordava de madrugada,
Agora canta desafinado como uma galinha d’angola
Disputando sinfonia com o Sabiá da mangueira.
Até a perereca que vivia coaxando quando chovia
E fazia banquete com grilos, mariposas e muriçocas,
Está do tamanho dum sapo boi com a ração dos cães da dona Sônia.
Pior é o gato safado da Marta que, não caça mais rato ou barata.
Depois que ralhei com ele, vira e mexe o doido mija no meu sapato.
E, no meio da madrugada, o bandido saltita de propósito
Na frente do sensor de alarme da garagem pra que ele dispare
Só pra me acordar e, quando olho pela câmera, ele está lá balançando o rabo,
Parece a Anita no carnaval de Olinda.
Não, não tô bem.
Como poderia estar se tudo parece fora do lugar?
Fora isso, só o Diazepam que parei de tomar.